Ive Farias e Luisa Gabriela contam um pouco sobre a Cocriadoras, projeto que utiliza da música produzida por mulheres para abordar temáticas como violência de gênero, violência sexual contra crianças, cura e protagonismo.
O que é o projeto das Cocriadoras e como surgiu?
Cocriadoras foi criado em 2019 como um projeto de artivismo feminista que parte da música produzida por mulheres, em sua diversidade, para abordar temáticas como violência de gênero, violência sexual contra crianças, cura e protagonismo. Cocriadoras surgiu também do encontro de amor entre Ive e Gabi, mulheres cis, que assumem uma relação lesboafetiva, depois de anos de relacionamentos héteros abusivos. Unimos nossas carreiras artísticas na música, na produção cultural, nas artes visuais e em investigações sobre gênero e feminismos para desenvolver performances musicais, bate-papos, vídeo-performances, zines e webséries. Ecoamos vozes da resistência em ritmos como coco, samba reggae, forró e ciranda promovendo reflexão, diálogo e quebra do "pacto do silêncio" sobre problemas que atingem a toda a sociedade.
Eu tenho observado/flertado a página de vocês e tem uma característica bem bacana que é essa mescla de Música + Arte Visual; de Arte + Ativismo; Composição Visual + Composição Musical.E tudo isso embalada com as discussões sobre gênero e feminismos. Nesse caldeirão de assuntos interdisciplinar, eu fico me perguntando como vocês se organizam para realizar algum projeto? Até onde eu sei vocês (Luisa Gabriela e Ive Farias) vem de formações distintas e, inclusive, de regiões diferentes.
Que alegria, Xanda, ficamos felizes de ver reverberar nossa atuação no mundo.
Respondendo a seus questionamentos, Ive nasceu em Salvador e cresceu na Liberdade, um dos bairros mais negros de Salvador e do Brasil. Ela é formada em Comunicação Social, com ênfase em publicidade, e tem mais de 10 anos de atuação como produtora artística, especialmente, com música e teatro. Musicista, cantautora e percussionista, também tem mais de 15 anos de experiência em trabalhos solo e com bandas. Gabi nasceu em Porto Alegre e cresceu na Ilhota, território negro em Porto Alegre. Formada em Artes Visuais, também tem mais de 10 anos de atuação como arte/educadora, artista plástica, produtora e gestora cultural. Em 2019, tornou-se Mestra em Estudos sobre gênero e feminismos, no PPGNEIM/UFBA, com pesquisa sobre mulheres artistas angoleiras em Salvador. Foi na experiência com a Capoeira Angola que Gabi teve o primeiro contato com a música onde vivenciou a experiência de tocar berimbau, pandeiro, atabaque, agogo e reco-reco, em grupo e, por vezes, protagonizando o canto com Ladainhas e corridos. Morando no Vale do Capão Gabi teve expandida a oportunidade de estudar percussão e canto com outras musicistas.
Hoje, vivemos juntas na roça, na Chapada Diamantina, e estamos cada vez mais em conexão a terra e seus chamados. Reunimos nossas habilidades e construímos um processo de criação que busca, cada vez mais, agregar saberes (da música, das artes visuais, da poesia, dos feminismos) e questionamentos sobre a atuação artística, artivista na cena e fora dela, sobre sexismo e racismo, sobre invizibilização, sobre relações de poder, etc. Entendemos que a vida é integrada, tudo está conectado, então buscamos dialogar com o público trazendo esse olhar sobre a palavra que passa por nossas cabeças e sai pela boca, sobre nossas ações no mundo. Para desenvolver os projetos, trabalhamos a partir de nossos sonhos e das demandas que surgem, seja através de parcerias que trazem convites ou em produções independentes que, por vezes, se realizam com apoio de editais públicos. Para definir uma ideia discutimos muitos sobre os objetivos, o que queremos realizar, as condições, a equipe e, então, nos dividimos entre a escrita, elaboração de planilhas, orçamentos, etc. Somos uma boa equipe e, sobretudo, atuamos em parceria com artistas e artivistas que nos dão apoio técnico, afetivo e psicológico. Uma rede informal que cresce e se expande à medida que se abre para as lutas comuns, para o reconhecimento dos privilégios e para a necessidade de engajamento.
Em 2019 vocês estiveram no país Basco, num encontro promovido pela Fundação Haurralde. Me fala um pouco desse intercambio e quais as diferenças e semelhanças vocês perceberam da luta feminista realizada no Brasil com a realizada no país Basco.
Em 2019, recebemos o convite da Fundação Haurralde para participar do Encontro "Jovens Artivista pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU". Nossa ida só foi possível graças ao apoio financeiro que recebemos do Edital de Mobilidade Artística promovido pelo Governo do Estado da Bahia, em 2019. O evento reuniu jovens de vários países como Peru, Colômbia, Porto Rico, México e Argentina para dialogar sobre os ODS e partilhar conhecimentos e experiências neste deslocamento desde nossos territórios até o País Basco. Foi uma experiência incrível de troca com artivistas que tem desenvolvido um trabalho intenso em seus países com cinema, Grafite, Rap, Plena (gênero musical de Porto Rico), teatro, etc. Realizamos algumas apresentações em diferentes cidades do País Basco e também a produção de um zine contando um pouco da experiência. O zine está disponível no link https://www.flipsnack.com/artivistas/a-arte-que-rompe-fronteiras.html (em português) e https://www.flipsnack.com/artivistas/el-arte-que-rompe-fronteras.html (em espanhol).
Na Europa, conhecemos o trabalho de mulheres imigrantes, uma realidade que não compartilhavamos desde nossas vivências na Bahia e no Rio Grande do Sul. Muitas mulheres saem de várias partes do mundo em busca de trabalho e oportunidades na Europa. No entanto, os desafios para garantir seus direitos trabalhistas e sociais são muitos, tal como aprendemos com a ONG Malen Etxea, gerida por mulheres imigrantes, vindas do sul do mundo, na cidade de Zumaia. O encontro com o grupo Plena Combativa de Porto Rico, com a atriz e cineasta Nair Gramajo (Produções Invertidas), com a comunicadora Cinthia Pacheco Moo do México, com as performers Irina Wainstein e Cecília Madariaga da Argentina e com a rapera Erika Rodriguez do Coletivo Dulima Vive da Colômbia ampliaram nossa perspectiva de mundo e do trabalho que artivistas vem desenvolvendo em diferentes territórios. Nos conectamos com a luta contra petroleiras na Patagônia, contra o racismo que a população indígena sofre na Colômbia, contra cinzas tóxicas em Porto Rico e a luta pelo direitos sexuais e direitos reprodutivos de mulheres e meninas no México.
Quais projetos vocês têm realizado nessa quarentena?
Quando começou o isolamento social tivemos que cancelar agendas confirmadas para realizar trabalhos em São Paulo como Ive e Gabi, pois cada uma também desenvolve projetos artísticos e artivistas autorais. A realidade é que na área artística e popular fomos as primeiras a parar e seremos as últimas a retomar o trabalho. Em abril começamos a promover o projeto Cocriadoras convidam nas redes sociais, onde chamamos cantautoras para um bate-papo musical. Este projeto foi tão incrível e o retorno das artistas e do público tão positivo que prevendo novas edições deste formato.
Hoje, estamos produzindo o lançamento da websérie musical L.I.V.R.E - Liberdade/ Independência/ Verdade/ Respeito/ Equidade. O projeto, em 3 episódios, teve apoio do Edital Calendário das Artes 2020, Funceb/BA, e será exibido nos próximos dias, o 1º episódio na TV Funceb Youtube e demais episódios no nosso canal Cocriadoras no Youtube. Cada episódio apresenta uma canção autoral, "Mulher é argumento", "5 anos" e "Desperta mulher", além da música L.I.V.R.E. As canções abordam os temas violência de gênero, abuso infantil e empoderamento. Graças ao apoio e dedicação da equipe, composta por Nin La Croix (Audiovisual) e Regiane Eufrausino (Intérprete de Libras), produzimos um material audiovisual atento e sensível.
Espaço para deixar qualquer recado que quiser e recomendações de artistas que vocês gostam e acompanham:
Cocriadoras nos inspira a criar, compor e levar uma mensagem positiva para o mundo, despertando um olhar atento sobre as opressões e manipulações do patriarcado e do racismo. É um espaço de afeto que nos permite transmutar muitas dores e inquietações através da arte, da música e do corpo em movimento. Queremos cada vez mais nos conectar com outras artivistas do Brasil e do mundo, partilhar nossos projetos e contribuir para a revolução que começa dentro da gente e se espalha. Muitas são as influências que nos inspiram: Martinha do Coco, Aurinha do Coco, Dessa Ferreira, Pâmela Amaro, Tereza Raquel, Panteras Negras, Dedê Fatuma, Ziati Franco, Laura Franco, Mô Maiê, Kaê Guajajara, Katumirim, Preta Rara, Plena Combativa (Porto Rico), Brigada de Propaganda Feminista (Chile), Yela Quim (Bogotá), Caye Cayejera (Equador).
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por
Alexandra Martins
Sobre a autora
Alexandra Martins nasceu em Brasília e já morou em Fortaleza, Juazeiro do Norte e Salvador. Artista interdisciplinar, Investiga memórias, ancestralidades e identidades nas criações artística de performance, instalação, fotografia e vídeo. Mestra em Estudos de Gênero e Mulheres pela UFBA. Especialista em Estudos Contemporâneos em Dança pela mesma instituição. Especialista em Artes Visuais pelo SENAC-DF. Graduada em Comunicação, Jornalismo. Integrou o Grupo de Pesquisa em Performance Corpos Informáticos (UnB) e fez parte da coletiva Tete a Teta. Também fez parte da Feminaria Musical, Grupo de Pesquisa em Experimentos Sonoros (UFBA). Teve trabalhos selecionadas para apresentar no Tubo de Ensaio (Brasília); Performance Corpo e Política (Brasília); Lacuna: Mostra de Videoarte (Brasília); Ruído. Gesto - Ação e Performance (Rio Grande do Sul); Festival de Fotografia de Porto Alegre; II Mostra de Arte e Gênero (Florianópolis); Continuum: Festival de Arte e Tecnologia (Recife); Encuentro de Acción en Vivo y Diferido (Colômbia) e no Hemispheric Institute of Performance and Politics (México). Participou das seguintes residências artísticas pelo Nordeste: Corpo em Casa (Salvador) e Sala Vazia (Fortaleza).
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